quinta-feira, 26 de março de 2020

De Rio Grande a Torres

Primeiro alvorecer no Atlântico Sul
Vencidos os molhes da barra de Rio Grande, rumamos para o Nordeste, acompanhando a costa deserta onde mal se via alguma luz aqui e ali. Mas as luzes das cidades ao longe, refletidas no céu, ajudavam a dar uma ideia da posição e da distância em relação à praia. Assim foi a noite toda e o amanhecer de sexta 24, com vento quase zero e motor funcionando o tempo todo.

Como nosso estoque de óleo diesel não era grande, foi preciso fazer uma escala para reabastecer, em Tramandaí. Na hora de lançar âncora, defronte à barra do Rio Tramandaí, fiz duas besteiras seguidas. Primeiro, saí correndo rumo à proa, para soltar a âncora, e devido ao bote inflável estacionado ali passei muito perto da borda do barco. Ao mesmo tempo, uma onda estava passando, como quem não quer nada, o que fez meu pé perder o contato com o convés (o chão onde eu pisava). O tombo n'água era iminente, mas aí cometi o segundo erro: tentar me segurar no guarda-mancebo (aquele cabo de aço que circunda toda a embarcação), por cima do qual eu fui lançado, usando mãos e pernas. Acabei pendurado, "ganhando" um arranhão na perna e torcendo um pouco o joelho,  por pura sorte, sem gravidade. É provável que cair no mar - o barco já estava parado, e os parceiros a bordo - tivesse sido mais divertido e inteligente, além de refrescante. Ainda precisei de ajuda pra sair daquele enleio, pois nem conseguia me puxar de volta sozinho.

Mas teve mais perrengue por ali. Embarcamos o Ingo no inflável, com um monte de galões vazios, rumo à praia. O Paulo conseguiu contatar o amigo Tonho Ely por telefone, quem se dispôs a dar carona até o posto de combustíveis. Na rebentação, lá se foi o bote onda abaixo, e o Ingo pra água com seus galões, por sorte amarrados um ao outro. Aparentemente, nada além de um banho forçado. Ao chegarem ao posto, contudo, a constatação: a carteira tinha se extraviado durante o pequeno naufrágio. O Tonho generosamente emprestou o dinheiro e trouxe o capitão de volta à praia, devidamente abastecido. Mais tarde, alguém encontraria a carteira. Mais um pouco de sorte.
Mais calmaria que isso, impossível...

Seguimos viagem faceiros. Ao passarmos por Xangri-lá, fizemos contato por telefone com o amigo Jorge, que estava veraneando por ali e viu nossa vela passar ao longe. Ao anoitecer, estávamos passando por Torres e entrando em Santa Catarina. O vento ia melhorando, muito lentamente. No meio da madrugada, durante o meu turno, eu tentava aproveitar aquela pálida brisa, porém o rumo do barco (que era preciso manter para aproveitá-la) ia dar na costa, lá adiante. Mantive até o último minuto, já sabendo que ao mudar o rumo teria de desistir da vela e ficar só no motor. Pois não é que bem naquela hora o vento muda a nosso favor? Mais um pouco de sorte, e já estávamos esbanjando a essa altura.

Não posso terminar a jornada sem ao menos tentar descrever a sensação de estar sozinho no convés, pilotando um barco à vela à noite no mar, que é das mais incríveis. Sensação de solidão absoluta e desamparo ante as forças da natureza, mesmo você tendo feito todo o dever de casa, tendo que contar com a sorte (de novo) de que nada vai estragar (no barco) ou dar errado (cruzar com uma baleia, uma rede ou sei lá). E apesar disso, ou por isso mesmo, é um prazer. O jeito é se concentrar no que é preciso e possível fazer, e não pensar muito no que pode acontecer. (E rezar, pra quem curte).

Nenhum comentário:

Postar um comentário